Em julgamento no STF, o futuro dos Planos Diretores
29 de setembro de 2014 |
Começou a tramitação final no Supremo Tribunal Federal de ação de Brasília que, pela primeira vez, leva um tema de direito urbanístico/planejamento urbano a ser discutido em plenário. Há um risco potencial de serem declaradas constitucionais regras isoladas que criam direitos e obrigações urbanísticas fora do contexto global estabelecido pelos Planos Diretores. A tese a ser fixada pelo STF orientará a política de desenvolvimento urbano a ser executada por todos os municípios brasileiros, em razão do reconhecimento de “existência de repercussão geral” na matéria.
Para o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), o caso é extremamente preocupante, pela ameaça de descaracterização do Estatuto da Cidade e de dispositivos da Constituição. A posição é compartilhada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e pelo Instituto de Arquitetoss do Brasil (IAB), por colocar em risco a obrigatoriedade de Plano Diretor como instrumento de política de ordenamento urbano.
A ação em julgamento é o Recurso Extraordinário 607940, referente à constitucionalidade da Lei Complementar 710/2005 do Distrito Federal, que estabelece regras para a criação de condomínios fechados. A ação foi proposta pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), contra a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), que em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), julgou constitucional a lei complementar.
Para o MPDFT, autor da ADI, ao permitir a criação de condomínios fora do contexto urbanístico global, a lei viola o Estatuto da Cidade, que define o plano diretor, obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes, como instrumento básico de política de desenvolvimento e de expansão urbana. Além disso, a aprovação teria ocorrido “de modo extravagante”, sem a elaboração de estudos urbanísticos globais e sem a participação efetiva da população”.
O julgamento foi iniciado em 21/08/14 e encontra-se suspenso em razão de pedido de vista do ministro Luiz Fux, após os votos dos ministros Zavascki, relator, e Luis Roberto Barroso, pelo desprovimento, e do ministro Marco Aurélio, pelo provimento do recurso.
REJEIÇÃO DO FNRU – Em Carta aos Ministros do STF, o FNRU é incisivo: “Rejeitamos qualquer atitude do judiciário que desconheça todo este esforço de elaboração de Planos Diretores participativos, pois permitirá refazer esse processo a partir de novas legislações, incoerentes com os parâmetros legais já estabelecidos no Plano Diretor”.
“Permitir que uma Lei Complementar emende a legislação urbana municipal, passando ao largo do processo pelo qual o Plano Diretor vigente foi implementado, desprestigiará as inúmeras providências técnicas e administrativas, além da ampla participação popular exigida para a elaboração desse instrumento. Isso descumpre os dispositivos constitucionais, além do Estatuto da Cidade. As decisões tomadas por um coletivo de políticos, sem a suficiente avaliação técnica e debate democrático, trará como resultado uma Lei desconexa, elaborada ao sabor da preferência momentânea de vereadores, fora do planejamento base representado pelo Plano Diretor”.
O FNRU lembra que a natureza jurídica do Plano Diretor é sui generis, se assemelhando a uma Constituição Urbanística do Município, e por isso deve ser salvaguardado.
Eis a íntegra do documento:
“CARTA AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL”
O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), articulação nacional que reúne entidades e movimentos sociais com atuação voltada à defesa e promoção do direito à cidade, construção de cidades justas e inclusivas, vem manifestar sua preocupação quanto ao julgamento do Supremo Tribunal (RE 607940) de declarar constitucional que regras isoladas possam criar direitos e obrigações fora do contexto urbanístico global estabelecido pelos Planos Diretores.
O FNRU se manifesta pela inconstitucionalidade de legislações municipais, que tratem sobre o desenvolvimento urbano, sem a elaboração de estudos urbanísticos globais e sem a participação efetiva da população. Permitir que uma Lei Complementar emende a legislação urbana municipal, passando ao largo do processo pelo qual o Plano Diretor vigente foi implementado, desprestigiará as inúmeras providências técnicas e administrativas, além da ampla participação popular exigida para a elaboração desse instrumento. Isso descumpre os dispositivos constitucionais, além do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001). As decisões tomadas por um coletivo de políticos, sem a suficiente avaliação técnica e debate democrático, trará como resultado uma Lei desconexa, elaborada ao sabor da preferência momentânea de vereadores, fora do planejamento base representado pelo Plano Diretor.
A natureza jurídica do Plano Diretor é sui generis, se assemelha a uma Constituição Urbanística do Município, devendo haver a salvaguarda do devido processo legal, que neste caso, por exigência do Estatuto da Cidade, da CF/88, e pormenorizado nas Resoluções n. 25/2005 e n. 34/2005 do Conselho Nacional das Cidades, deve observar ampla participação social. Assim, o Plano Diretor não é somente mais uma lei no compêndio normativo do município, mas uma pactuação político-social emanada por ampla deliberação pública, sobre o desenvolvimento urbano por um período de 10 anos. Sem olvidar que é por meio de tal instrumento que se tem o contorno do conteúdo da função social da propriedade urbana, como dispõe o art. 182, §2º, da CR/88, o que justifica o procedimento especial que reveste esta normativa uma vez que a concretização de inúmeros direitos sociais, econômicos, sociais e ambientais (moradia, mobilidade, acesso a emprego e renda, lazer, saúde educação, dentre outros) se pactuam neste instrumento.
Consequentemente, toda a legislação urbanística local submete-se à mesma intencionalidade e ao mesmo regime jurídico de produção (por exemplo, ao processo legislativo especial, com quórum qualificado, inarredável participação popular, iniciativas reservadas, estudos técnicos, etc.), mesmo que formalmente editada em diploma próprio apartado. Outra não pode ser a interpretação da Política Urbana Constitucional senão aquela que compreenda os processos de elaboração ou revisão dos Planos Diretores como uma pactuação social sobre as diferentes políticas no território e sobre os contornos da função social da propriedade, tornando o Plano Diretor instrumento máximo definidor dos parâmetros urbanísticos municipais, e isto somente se dá com a observância do devido processo participativo popular.
Não é de hoje que este Fórum, moradores e moradoras lutam para que a Política Urbana seja construída de forma democrática e participativa. As conquistas chegam gradualmente e os Planos Diretores tem desempenhado um papel fundamental, daí nossa indignação e preocupação quanto ao debate sobre o conteúdo do Plano Diretor, e a possibilidade ou não de temas urbanísticos serem regulados por normas fora e incongruentes a esse Plano. De forma que toda a luta por processos participativos, toda conquista alcançada nos longos períodos de debates públicos poderiam ser colocados abaixo por uma votação na Câmara Municipal, por Lei Complementar sem qualquer participação popular mais ampliada.
Os Planos Diretores são definidos em um processo que assegura a amplitude, a consistência técnica e política exigida pela sociedade democrática para construir a cidade desejada por todos nós. Por isso, o FNRU defende o Plano Diretor enquanto instrumento básico da política urbana como forma de democratizar nossas cidades.
Rejeitamos qualquer atitude do judiciário que desconheça todo este esforço de elaboração de Planos Diretores participativos, pois permitirá refazer esse processo a partir de novas legislações, incoerentes com os parâmetros legais já estabelecidos no Plano Diretor”.
VOTO DO RELATOR – Para o ministro Teori Zavascki, a regulamentação dos loteamentos fechados não tem necessariamente de constar do Plano Diretor. Segundo ele, a Constituição Federal atribuiu aos municípios com mais de 20 mil habitantes a competência não apenas para definir seus planos diretores, mas também para editar normas destinadas a promover o ordenamento territorial, planejamento e controle de uso do parcelamento e ocupação de solo urbano (artigo 30). “São duas competências diferentes”, assinala, lembrando que os municípios estão, a seu ver, “investidos de pleno poder normativo para dispor a respeito”.
Para o ministro Teori, o Plano Diretor tem caráter geral, com critérios definidos em nível federal – o Estatuto da Cidade (Lei 10257/2001). A Lei Complementar 710/2005, por sua vez, se ocupa da disciplina de projetos urbanísticos de condomínios fechados, dispondo sobre demarcação das unidades autônomas e das áreas comuns, implantação de sistema viário e infraestrutura básica, manutenção e limpeza, etc. “O que a legislação distrital propõe é o estabelecimento de um padrão normativo mínimo para os projetos de futuros loteamentos fechados, com o objetivo de evitar que situações de ocupação irregular do solo, frequentes no perímetro urbano do DF, venham a se consolidar à margem de qualquer controle pela administração distrital”, esclareceu.
Para o relator, nem toda matéria urbanística tem de estar necessariamente contida no Plano Diretor. “Há determinados modos de aproveitamento do solo urbano que, pelas suas singularidades, podem receber disciplina jurídica autônoma”, concluiu, entendendo legítima a LC 710, sob o aspecto material e formal. O voto do relator, pelo desprovimento do recurso, foi seguido pelo ministro Luís Roberto Barroso.
Para o ministro Marco Aurélio, que conheceu e deu provimento ao recurso, o TJDFT, ao entender que a Lei Orgânica do DF não esgota as hipóteses de instrumentos legislativos aptos a dispor sobre o ordenamento territorial, colocou, em plano secundário, a previsão do artigo 182, parágrafos 1º e 2º, da CF, quanto à observância obrigatória do Plano Diretor.
REPERCUSSÃO GERAL – O instituto da repercussão geral é dado a temas relevantes do ponto de vista social, econômico, político ou jurídico.
Em seu recurso, o MPDFT alegou que a lei do DF viola dispositivos constitucionais que tratam de política urbana e determinam a aprovação de plano diretor como instrumento básico de política de desenvolvimento e expansão urbana para cidades com mais de 20 mil habitantes (parágrafos 1º e 2º do artigo 182 da Constituição).
“Nessa contextura, tenho que a questão constitucional debatida na causa em exame – obrigatoriedade do plano diretor como instrumento da política de ordenamento urbano – ultrapassa os interesses das partes”, argumentou em 20/01/11 o primeiro relator do processo, ministro Ayres Britto, ao reconhecer a existência de repercussão geral na matéria.
Ele complementou que “a tese a ser fixada pelo Supremo Tribunal Federal orientará a política de desenvolvimento urbano a ser executada por todos os municípios brasileiros”.
A decisão que reconheceu a repercussão geral foi tomada por maioria de votos. A partir do momento em que o Supremo decidir o mérito da questão, o entendimento poderá ser aplicado em todos os recursos extraordinários propostos nos tribunais do país.
BELO HORIZONTE – Em 30/08/13, também por decisão do ministro Teori Zavascki, a Prefeitura de Belo Horizonte foi habilitada no processo, na qualidade de “amicus curiae”, em razão da conclusão do julgamento atingir diretamente o modelo de política urbana da cidade, que também possui similar instrumento de intervenção urbanística, conhecidas como Áreas de Diretrizes Específicas (ADEs), com parâmetros urbanísticos, fiscais e de funcionamento diferenciados.
O Fórum Nacional de Reforma Urbana, criado em 1987, é um grupo de organizações brasileiras que lutam por cidades melhores para todos nós. São movimentos populares, associações de classe, ONGs e instituições de pesquisa que querem promover a Reforma Urbana. O Fórum está organizado em todas as regiões do Brasil e se fundamenta em três princípios: o Direito à Cidade, a Gestão Democrática das Cidades e a Função Social da Cidade e da Propriedade.
(Com informações do FNRU e do STF)
Publicado em 24/09/14